O comportamento alimentar é extremamente complexo e transcende a ingestão de alimentos. A fome é a expressão biológica da necessidade de regular o balanço energético e obedece a uma necessidade fisiológica. O apetite está ligado ao psíquico e regido pela necessidade do prazer. Não toma como referencial o suprimento destas necessidades. O apetite busca prazer, satisfação libidinosa.

Observando o comportamento alimentar sob este ângulo, a ingestão na espécie humana não está vinculada estritamente à fome, enquanto alimento. Assim é possível comer sem ter fome e beber sem ter sede. Ao longo das aulas foi possível refletir sobre este comportamento peculiar ao ser humano, que tem uma vida psíquica simbólica e perceber que a ingestão alimentar cumpre duas funções importantes para o equilíbrio geral do ser humano: fonte de energia e prazer, função tanto biológica como psicológica.

A obtenção do prazer, um dos motores do funcionamento psíquico e do comportamento humano com clareza envolve a simbolização e o significado do que a experiência tem para o indivíduo.

O comportamento do homem é modulado não só por instintos, mas também por este “simbólico”, o que explica que o comer não se dá de forma padronizada para todos os homens. O comer é atravessado pelo processo de simbolização e, conseqüentemente terá significado e função na economia psíquica diferentes para cada um, constituindo-se num comportamento com peculiaridades singulares, diferenciadas para o mesmo indivíduo nas diferentes fases de sua vida.

Por um viés da teoria psicanalítica, penso que a ingestão alimentar é uma das células do desenvolvimento psíquico. De acordo com várias exposições e estudos psicanalíticos apontam que paralelamente ao desenvolvimento físico dar-se-á o desenvolvimento psíquico como se percebe em comentários alusivos nas obras de Freud (O mal estar na Civilização – 1930) e Spitz (O primeiro ano de vida – 1979). Winnicott (O desenvolvimento emocional primitivo – 1945) afirma que cada função somática, principalmente as ligadas aos comportamentos que garantem a sobrevivência do ser humano, será articulada à rede simbólica, resultando na articulação de um “self” integrado e reconhecido.

Ora, os mundos psíquicos, simbólicos, que será a base para a aquisição da linguagem e do pensamento, desenvolver-se-á partindo de um estado inicial de indiferenciação, passando por estruturações sucessivas de processos mentais que emergem de protótipos fisiológicos. Isso significa que o bebê não tem ainda um mundo completamente formado que lhe possibilite perceber-se diferenciado e separado do mundo externo. Graças a sua imaturidade psíquica nesse momento tão precoce da vida, sentirá desconforto, desprazer, etc. e reagirá indiscriminadamente da mesma forma: chorando. Daí a importância do meio ambiente externo a ele que possa identificar essa necessidade e a satisfaça, com o objetivo de resgate das sensações de bem estar. Um bebê com fome tem uma experiência desagradável e a mãe, quando o alimenta, livra-o desse desconforto e lhe traz uma vivência de satisfação. Experiência, essa, que fica registrada numa representação psíquica, um traço mnemônico, criando a associação entre amamentação e prazer. Essa memória vai organizando sua percepção da realidade e também desenvolve a possibilidade de suportar esperar a satisfação. Mas o bebê que não chega a sentir tal necessidade, talvez por que a mãe não o satisfaz como hipótese poderá ter falhas no processo das representações mentais.

Percebo que, se existem estas representações que permitem formar uma cadeia associativa, será possível refletir sobre os próprios problemas. Se não existem, não há recursos para decodificar e equacionar em palavras as tensões psíquicas, como a angústia, o  que deixa triste. Sente-se um desconforto que não é possível nomear e então fugindo desse desconforto busca-se uma fonte de prazer. O comer pode ser essa forma de prazer buscada para escapar dessa experiência desagradável e substituí-la. Esse mecanismo de busca e alívio de tensões psíquicas por meio da ingestão alimentar, denominado de compulsão faz vivenciar uma situação desconfortável, e assim como o bebê chora até que a mãe o alimente, o Compulsivo alimentar confunde sensação de fome com sentimentos e emoções.

Notamos hoje, principalmente nos hospitais uma categoria distinta na Compulsão Alimentar – categoria periódica que se caracteriza por episódios recorrentes, pelo menos duas vezes por semana durante 6 meses, associados a indicadores subjetivos e comportamentais de prejuízo no controle e sofrimento significativo relacionado aos ataques de hiperfagia.

Acompanho alguns casos onde os indicadores de perda de controle estão entre: comer grandes quantidades de alimento, muito rapidamente, mesmo sem fome, o “comer” sozinho, o “comer” escondido dos outros, sentir repulsa e culpa seguida de depressão após a ingestão alimentar excessiva. Claro está que para este diagnóstico, verificamos a presença de sentimentos desagradáveis durante e após os episódios de excesso alimentar, pois além da dismorfia corporal, depressão, ansiedade e sentimentos inespecíficos de tensão são identificados como fortes ativadores desta ação.

Em alguns momentos descrevem-se quadros de “torpor” ou de estar “aéreo” nos episódios. Indivíduos com esse padrão alimentar apresentam freqüentemente autodesprezo, repulsa a forma corporal, preocupação somática em suas relações interpessoais.

Existem evidências de que o Transtorno da Compulsão alimentar periódica pode ser um elemento que contribui para a obesidade em indivíduos suscetíveis, sendo 1,5 vez mais freqüentes em mulheres que entre os homens.

Pacientes com compulsão alimentar apresentam mais transtornos psicopatológicos, pois aqui se encontra a associação da compulsão e obesidade com a depressão maior.  Um estudo realizado por Yanovski e colaboradores indica 54% dos obesos com compulsão alimentar apresentando depressão maior, enquanto obesos sem compulsão, essa freqüência é de apenas 14%. Fatores como condição socioeconômica, predisposição tanto para a depressão como para a obesidade pode coexistir no genoma de algumas pessoas, além do estresse que é apontado como um fator que contribui para alterações dos mecanismos tanto fisiológicos como psicológicos. Creio que uma das conseqüências do estresse é o fato de criar condições psicológicas desfavoráveis para a manutenção de hábitos como adesão a dietas saudáveis, atividade física e outros elementos indispensáveis para repensar o transtorno. Com certeza as alterações fisiológicas, nesse caso, reportam-se as alterações dos níveis de cortisol, associadas ao aumento da obesidade abdominal, entre outras.

Considerações finais

Compreendem-se as dificuldades de adesão ao tratamento desses pacientes e fica claro que a dificuldade em aderir à dieta liga-se ao fato de que a ingestão alimentar tem importante função na manutenção do equilíbrio psíquico, sendo a restrição alimentar algo que terá impacto direto na vida emocional.

A depressão, por seu lado, também desfavorece a adesão ao tratamento, entre outros motivos, a auto-estima rebaixada e os sentimentos de impotência e de fracasso determinam a desmotivação geral com o autocuidado.

Suportar, essa palavra acompanha a ansiedade, a angústia, a dor em esperar o resultado, pois exige o controle de uma fonte importante de prazer, mas essa por si só não permite a solução do problema.

Penso que a indiferenciação eu – outro gera sentimentos de raiva em relação ao profissional, que encarado como extensão de si próprio, ao impor regras e formas, estaria desencadeando uma frustração ainda maior em vez de compartilhar as experiências. Ainda que para o profissional seja uma situação limítrofe, porque pode gerar uma situação de impotência frente às expectativas é preciso construir um outro cenário propício para intervenção.

Buscar uma relação infantilizada entre as verdades e mentiras criadas pelo paciente, a obediência às ordens, afinal surge na eficácia do tratamento mecanismos de defesa inconscientes e não voluntários. A mentira poderá ser entendida como negação, uma defesa contra a angústia de não ter controle sobre “o comer”.

É importante considerarmos os fatores psicológicos presentes na síndrome metabólica. Portanto ter uma visão mais abrangente para reverter essa situação é condição sine-qua-non para destravar essa imobilização psíquica e refletir com o paciente sobre as dificuldades e possibilidades em redirecionar e reposicionar seu tratamento, adequando fatores importantes, cenário, projeção e expectativas reais onde o paciente não se sinta irritado por sentir-se enganado ou traído.